Porque somos americanos

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Fala-se brincando no Brasil que Portugal não é Europa. Na verdade, sendo específico, tudo que existe para cá dos Pirineus já não é mais Europa. Talvez seja apenas um chiste inculcado no imaginário do nosso povo, resultado da disputa Imperialista das potências européias em todo período colonial, até começo do século XX. Entretanto, uma outra versão leva a acreditar essa reação também seja resultado do sentimento anti-português e anti-espanhol aprofundado no momento pós-independentista na América Latina, no começo do XIX. Não importa, não é preciso escolher, independentemente da razão, cada uma remete ao seu modo nossa aversão ao passado colonial.

Nos tornamos Nações independentes e, no entanto, fracas econômico e politicamente, de modo que fomos arrastadas pelo crescimento do mercado mundial liderado pelas antigas potências européias e, depois, dos Estados Unidos, e ficamos a ver navios durante todo o XIX e até meados dos anos cinquenta do século passado. No caso do Brasil — colônia que saiu ilesa da fragmentação pela qual passaram os vizinhos latino-americanos — , a independência tomou sentidos ainda mais labirínticos, sobretudo quando se rememora que "tomamos" de Portugal nossa liberdade de Nação e seu Rei, ao mesmo tempo. Tudo bem que Napoleão deu uma mãozinha quando fez a família real toda sair corrida de Portugal; e que Pedro I retornou à metrópole em 1831 escorraçado, após a Noite das Garrafadas; e que, se a oligarquia dirigente da época fez questão de segurar Pedro II, não se opuseram em despachá-lo, num golpe, junto a toda sua família em 1899 — que o Exército fez, se de bom grado ou não, já é outra história. Acabamos com a dinastia dos Orleães-Bragança e foram eles para a Europa (na França, e não para Portugal, note-se bem!).

Mas tudo bem, nos primórdios da República os interesses eram outros. A Princesa Isabel e o Conde D’Eu — um francês — não eram queridinhos das elites econômicas e políticas, considerados progressistas demais (oxalá tivessem sido o dobro!) para um país que precisava ser conduzido com Ordem para se atingir o Progresso. Afinal, o que seria da jovem nação brasileira sem a Ordem naquele momento? Como evitar que os negros recém forros e os colonos que se apinhavam nos portos não fossem invadir terras improdutivas da nobreza da República? Ocupassem cargos merecidos pelos filhos da elite, pelos amigos estrangeiros que tanto colaboravam com a Nova República ao Sul do Rio Grande, com as finanças da Nação? Não, foi preciso ser cordial, oras pois!

Mais tardem, já nos trinta, quando a urbanização — já caótica — e a migração interna se aceleraram, novamente foi preciso de pulso firme para assegurar o Progresso. Novamente o povo e os pobres, os negros do morros e os sertanejos morrendo de fome nos rincões do país, ameaçaram colocar em risco a Ordem no Brasil. E veja só: as elites já haviam mandando, pelos seus representantes políticos, higienizar as cidades, alargar as ruas nas maiores capitais, iluminar com energia elétrica as praças da classe média, como lá em Paris e em Nova York! Os ricos mais ricos tinham até carros e a cidade do Rio de Janeiro ganhou um Cristo Redentor — branco e católico, para os que eventualmente se esquecessem da tradição brasileira. Mas era preciso garantir mais! Afinal, a questão que se colocava era de outra ordem: éramos ou não americanos? E os de baixo ameaçavam por fim a tudo aquilo, ameaçavam invadir as coisas públicas, as praças, o teatro, até a música estava sendo degenerada com o samba dos pretos dos morros. Era necessário Ordem. Foi com Ordem que a América era agora a maior potência do mundo. Ordem. Tínhamos tudo para sermos Americanos: independentes, continentais, grandes em população, uma elite ilustrada que comprava e consumia igual aos povos civilizados do além mar… Mas o povo e os “trabalhadores do Brasil”, ah, esses precisavam de rigorosa condução! Caso contrário seriam manipulados pelo comunismo e instigados a pedir direitos e igualdade, indo contra o sistema de favores que sustentava aquela exemplar democracia meritocrática ao sul do Rio Grande.

Não obstante, não bastou iludir o imaginaire populaire com carros, eletrodomésticos, comidas fáceis de comprar em moderníssimos supermercados just like in America. O povo não se deixou educar pelo cabresto do mito do desenvolvimento e foi preciso novamente pedir que as Forças Armadas garantissem a Ordem. Era necessário que o bolo crescesse antes de dividi-lo, dizia o sábio ministro ilustrado, enquanto organizava a economia do país, flexibilizava o aparato Estatal para finalmente — depois de quase um século de República — atingirmos o Progresso, com uma promessa que era objetiva: ao fim e ao cabo, seríamos Americanos, mesmo que sob a mira de fuzis!

E essa promessa de sermos Americanos é bastante curiosa, sobretudo para nós, que temos de tudo para já o sermos. Afinal, nascemos ou não na América? Mas os Estados Unidos — cujo nome remete a um Estado, que se uniu a outro Estado, e depois a outros e que no fim não remete a lugar nenhum — tem usado o gentílico American desde 1776. E parece até a nossa maldição enquanto povo irmão viver às sombras e em luta com a ideologia do Destino Manifesto, até mesmo em nosso gentílico, essa coisa tão sem importância, mas tão crucial e natural por direito constitucional. Todos os que nascem na América são americanos, mas os que nascem nos Estados Unidos são mais. Inquestionavelmente são Americans. E por mais que possa parecer quixotesco, revanchista e até mesmo desimportante se questionar nossa autonomia de povo e de Nação através gentílico usado também por uma ex-colônia desde o século XVIII, talvez não o seja.

Imagine que os franceses tivessem em algum momento começado a se auto-designarem não mais franceses. Que Napoleão, na sua ganância de construir um novo Império continental, tivesse proclamado que a partir de então todos os nascidos na França seriam Os Europeus. Tudo que estivesse além dos Pirineus, ou ilha de povos formado por piratas, terras além Mediterrâneo e Atlântico e povos bárbaros do leste, não mais seriam reconhecidos como europeus. Por tabela, eles poderiam seriam o que quisessem, menos Europeus, pois europeus somente os nascidos na França. Além de ultrajante, seria inconsistente. Quem nasce na França sempre será francês, pelo menos desde que a França existe como Estado-Nação e seus vizinhos também.

Mas quem nasce nos Estados Unidos não é estadunidense. São Americans e assim se designam por terem sido todos eleitos por Deus para civilizar o Novo Continente. Por tabela, todos os povos existentes até então na América perdem sua autonomia, viram pré-colombianos, ou ex-colônias atrasadas e agrárias, em que a Civilização foi degenerada pelo contato e pela mistura com outras raças e culturas. Argentinos, brasileiros, chilenos, cubanos, venezuelanos, podem todos ser o que eles acham que querem, menos serem Americanos. O gentílico "brasileiros", inclusive, remete aos contrabandistas de pau-brasil da costa Atlântica americana, que os levava à Europa para atender as demandas de madeira e tecidos coloridos daquelas cidades em expansão. Uma nação de traficantes!?

Mas nem tudo está perdido. Para nossas elites, sempre foi possível civilizar-se, desde que seja estabelecida Ordem. Como dito, a Ordem é a chave para o Progresso. Foi assim que iniciamos nosso processo de americanização. Era preciso ordem para americanizar nossas velhas estruturas corrompidas. O peso da degeneração fazia com que mirássemos nos modelos errados, soviéticos, mesmo os atrasados europeus. As Forças Armadas novamente colocaram o trem de volta aos trilhos. O bolo cresceu tanto que alguns dizem que até chegou a derramar — os números desmentem. Milagre somente no prato das classes médias. Os pires dos pobres continuaram vazios. Mas, afirmam os filhos dos ilustrados, os brasileiros tornaram-se cada vez mais — e genuinamente — Americans, quando consumiram a modernidade em músicas, filmes, revistas, jornais, rádio e televisão. Empregos modernos, modernas organizações empresariais, finanças financeirizadas, grandes bancos, shopping centers, metrópoles globais, condomínios de luxo, lucros bilionários… A promessa e o milagre do progresso diariamente materializados! Afinal de contas, se a América e dos Americans, Deus é brasileiro! Ou não é?

Parece tudo muito confuso. Passado remoto, passado recente e presente. De colônia à Império; de república à Ditadura Militar; de democracia consolidada à Estado de exceção via lawfare. Ficamos cada vez mais cidadãos americanos e cada vez menos brasileiros. A Civilização desponta no horizonte, cada dia mais ordenada pela violência de toda a máquina estatal sobre o povo, que novamente ameaça colocar a ordem conquistada em cheque, afastando a promessa de, ao fim e ao cabo — e antes que o mundo acabe em uma gigantesca bola de fogo radioativa — , sermos Americans. Mas o recado vem sendo dado: não há a menor chance de atingirmos o nirvana civilizacional enquanto houver críticas à Ordem patrimonialista, machista e racista já conquistada. Objetivamente, isso quer dizer que enquanto houverem manifestações nas ruas, reservas indígenas, enquanto o direito à propriedade desocupada, improdutiva ou mesmo abandonada ao leu puder ser questionado por uma única pessoa se quer, mesmo que não tenha onde morar, ou onde trabalhar; ou que se imponham proteções ao meio ambiente; direitos — como aposentadoria, seguro-desemprego, ou saúde e educação pública gratuita e de qualidade -; e empregadas indo à Disney, não haverá o Progresso (para as elites e classes médias).

E pouco importa que haja pessoas nas ruas e nas casas sem ter o que comer, vestir e imaginar — além da fome. Para o Progresso de alguns é preciso garantir a Ordem da maioria e a assegurar que a ordem já conquistada não recue. E para se ter Ordem, não é preciso respeito e muito igualdade (nem formal, nem real, nem política, nem econômica e muito menos social). Apenas é necessário inquestionável obediência e servialismo do povo. O que, certamente, é um trunfo das elites do país, quem vem ganhando todos os anos prêmios e capas de revistas exaltando seu grande case de sucesso: a garantia da Ordem, na base de Boi, Bala e Bíblia feat policiamento ostensivo e direcionado às minorias, grande mídia e agências e empresas genuinamente Americans, sempre dispostas a Civilizar os degenerados da terra! Jamais seremos Portugueses!

Artista: Hal Wildson, “Identidade válida em todo o território Nacional.” sobre o Brasil e seus “documentos” de origem. Série que originou o trabalho REPÚBLICA DA DESIGUALDADE.

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