Sobre o Trabalho Doméstico — I
Há no Brasil espaços e trabalhos que não deveriam existir mais e que vem sendo mantidos de forma sistemática como forma de exercício de poder sobre corpos de outros seres humanos. O trabalho doméstico é uma expressão deles. E é não porque porque é um trabalho de menos prestígio. A máquina e o capital dessexualizaram o ato de trabalhar, há muito. Qualquer ser humano, independentemente do sexo biológico ou da afinidade sexual que venha a ter, pode limpar, lavar, cozinhar, fazer as tarefas e atividades diárias que compõem o trabalho de reprodução da vida no seu dia a dia. Mas o fato de que mulheres negras continuam sendo as que mais realizam esse tipo de tarefa — como um trabalho e forma de ganhar a vida — significa alguma coisa.
Aqui temos uma abertura de porquês. Primeiro sobre o conceito de trabalho doméstico. Quando digo trabalho doméstico, digo a reprodução da vida no seu acontecer do dia a dia. É o mercado que precisa ser feito para que a geladeira tenha comida. É o alimento que precisa ser cozido e que precisa, para isso, ser pensado, que seja descongelado, preparado. É a casa que se limpa para alguém poder descansar após o dia de trabalho. E, também, a roupa que se passa para alguém vestir na rua, no trabalho, em um bar; o serviço da copeira do clube, da garçonete do bar, a caixa do mercado, da moça da padaria, daquela que trabalha na limpeza do banheiro do trabalho, no escritório, na fábrica, na universidade, no Fórum, no posto de saúde, na casa. É o passear com crianças e seu cuidado. É todo o trabalho que constitui o alicerce material do dia a dia, da vida social e política da sociedade civil.
Alguém precisa realizar esses trabalhos. Eles existem pois há espaços de trabalho e lugares com uma determinada hierarquia de posições, demandando a realização de determinadas atividades e serviços que, em geral, contratam para sua execução uma quantidade de mulheres que, estatisticamente, são superalocadas na prestação de serviços de reprodução desse cotidiano, em trabalhos de menor prestígio e de baixa remuneração.
Isso não é de hoje. Acontece assim desde que as primeiras casas comerciais e fábricas começaram a abrir no Brasil. Mas esses "modernos" estabelecimentos capitalistas não inauguraram a estrutura desse mercado de trabalho, racista e sexista. Esse país tem se mostrado um terrível espaço para se nascer ou se ser mulher nos últimos cinco séculos, pelo que sei. Nesse longo período, o que hoje se chama bens de consumo foi objetificado na figura da mulher escravizada, objeto de consumo doméstico essencial. Como escrava, a mulher negra tinha o dever de trabalhar e servir um Senhor branco, e às senhoras, também. Como mulher, ela tinha o dever ser genitora de prole de objeto sexual de senhores e senhoras neuróticos. Ela só existia como objeto sexual, objeto de reprodução da força de trabalho e como objeto de trabalho, propriamente dito.
Ainda assim, o trabalho doméstico não "nasceu" com a escravidão. Ele é parte da vida humana em sociedade, seja ela primitiva ou complexas civilizações. Mas a escravidão colonial brasileira fez do trabalho doméstico um trabalho essencialmente racializado e sexualizado. Havia, é certo, um modelo europeu, de origem europeia pelo menos, a ser seguido e em processo contínuo de transplantação. Mas aqui as mulheres negras foram usadas como bens de consumo duráveis muito antes da maquinaria fazer os sonhos de qualquer burguês ou os anúncios nas páginas de jornais e revistas de classe média. Lavadeiras, cozinheiras, mucamas, submetidas ao trabalho compulsório, foram baluartes da reprodução da vida doméstica e do cotidiano no Brasil, por muito tempo. E, no pós-abolição, continuaram a ganhar sua vida e sustentar suas famílias realizando esses mesmos tipos de trabalho, sujeitas as mesmas formas de violência moral, física, institucional.
A escravidão acabou, mas a reprodução da vida doméstica continuou a ser realizada pela mulher negra. Que tipo de formação social é essa que na sua gênesis teve a escravidão como espinha dorsal, que a aboliu formalmente, mas que não a desestruturou? Que passou a viver com ela como se fosse um passado, um somenos, como a lembrança de um tempo adocicado, em que os criados seguravam a água na cabeceira da cama, mudos, a noite toda?
O trabalho doméstico evidencia como seguiu firme essa estrutura. E serve, também, para mostrar como ela foi e é plástica a ponto de absorver outros modelos, novas problemáticas e sentidos, mas sem perder o original. As babás são exemplo. A mãe-negra é figura bem conhecida no Brasil. Remonta da ama de leite da época escravista. É a preta-velha cozinheira, a tia Anastácia, consagrada em Monteiro Lobato e que, vira e meche, aparece estereotipada na novela, ocupando "seus lugares" seculares. Mas a babá branca é preferência desde os anos 1920–1930. A branca imigrante (europeia, preferencialmente, mas também a nativa) tomou seu lugar. São pobres, mas se inserem mais facilmente na sociedade do trabalho nos moldes capitalistas que vinha sendo estimulada desde do final do XIX, aqui. Elas não escapam da segregação, da pobreza, do trabalho mal remunerado, pior remunerado que dos dos homens, sexualizado e muitas vezes violento. O Brasil também é um país desgraçado para essas mulheres. Mas elas foram preferidas para cuidar da prole da classe média branca. As mulheres negras continuaram nas cozinhas, nas lavanderias; limpando as casas, banheiros e corredores de empresas, repartições públicas. Elas disputam, inclusive, esses empregos com mulheres brancas. O trabalho mal remunerado nos serviços deixou de ser uma exclusividade das mulheres negras conforme avançou o capitalismo brasileiro. Mas continuou a ser majoritariamente realizado por elas.
O problema não é só o trabalho que a mulher negra faz ou como se dá essa disputa no setor de prestação de serviços para a reprodução das bases materiais do mundo doméstico, social e político da sociedade civil. A outra face dessa questão é o que ela é negada de fazer; ou o que ela só consegue fazer de forma capenga, que é a sua própria reprodução e dos seus. O que precisa ficar claro nessa panacéia toda é a negação sistemática que essa racialização sobre o trabalho feminino impôs do ponto de vista da formação social desse grupo: são séculos de negação à formação intelectual, cultural, social e política, implicando em piores salários, maiores taxas de desemprego, exposição ao analfabetismo, a homicídios, as piores condições de moradia— para ficar apenas em aspectos mais gerais que podem ser identificados nessa população, não baixando à aspectos individuais.
Trabalhar nunca foi o problema das mulheres negras (tampouco direito, vale apontar), como foi para mulheres brancas no século XX. A liberação da mulher negra no Brasil é de outro tipo, uma vez que esse grupo foi raptado e obrigado a vida e trabalho escravos. A escravidão acabou e o problema dos escravos e escravas, também. Mas ela não resolveu o problema dos negros e das negras. E essa solução tem sido recorrentemente negada desde então, ao passo que se adicionaram novas camadas de segregação e discriminação naquela estrutura social estamental, que se dizia modernizando e aburguesando ao longo do século XX.
O trabalho doméstico aponta isso novamente e deixa muito claro. O quarto da empregada e área de serviço viraram senzalas do moderno apartamento e da casa do subúrbio de classe média alta. Não é só um espaço de circulação reduzido ou uma lugar de baixo prestígio na casa. Eles representam, também, o apartamento que essa forma de trabalho — e, portanto, de viver a vida — seguiu impondo sobre o cuidado de si e da sua família, no dia a dia. A impossibilidade de alimentar e cuidar das vidas que, diretamente, lhe interessam. E isso para trabalhar cuidando da vida de outros. Trabalho mal remunerado, que implica não apenas nessa distância física, mas numa espacialização que vai se impondo dentro da própria cidade que cresce e se urbaniza. A empregada não pode morar no cortiço, nem na favela. Não se coloca mulher de cortiço, mãe-solo e favelada dentro de casa, como doméstica. Carolina Maria de Jesus narrou esse dilema de forma clara e objetiva. Mas não importa se, uma vez desempregada, essa mulher precisa encontrar na favela sua habitação e no lixo, seu ganha-pão. É melhor que essa mulher e sua família “disfuncional” habite nesses espaços subnormais, nesses “despejos”: longe da vista e dos espaços que a sociedade civil transita. No espaço doméstico, se exige domesticidade: tanto de animais, como de criados e serviçais. O lar da classe média branca e católica brasileira é sagrado.
É esse lugar comum do serviços, da negação de reprodução da sua vida e da domesticidade como fator de qualificação para exercer uma atividade de trabalho — que nem se deseja —que foram e são a essência do trabalho de reprodução da vida doméstica brasileiros. Foram ao longo de toda a era colonial; continuaram a ser durante a imperial; se metamorfosearam em algo diferente na era burguesa, mascarados de mercantificação da força de trabalho, de competição com brancas e brancos pobres. Todavia guardaram a sua essência de subalternidade, de domesticidade, de negativa à reprodução de si e dos seus.
A modernidade não reverteu essa qualidade brasileira, mas a mascarou e dissimulou. Nem a industrialização, nem a urbanização salvaram ninguém aqui. E o Brasil continua sendo um lugar terrível para se viver, especialmente se você for mulher, negra e pobre.